O RECOLHIMENTO DO ICMS, CRIMINALIZAÇÃO E A INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

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Em recente julgado, o Plenário do Supremo Tribunal Federal[1] entendeu por caracterizar crime de “apropriação indébita tributária[2]” o não recolhimento, dentro do prazo de vencimento, do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e Comunicação – ICMS próprio, mesmo que declarado.

O caso, oriundo da Justiça Estadual de Santa Catarina, tratava do recolhimento de ICMS sobre operação mercantil, onde o sujeito passivo declarou o valor, mas não o recolheu. Por tal motivo, os responsáveis pelo recolhimento foram denunciados pelo crime de apropriação indébita tributária. Tal discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal, que, por sua vez, decidiu no sentido de criminalizar a referida inadimplência fiscal, sendo este entendimento o objeto da discussão do presente artigo.

Em relevante debate travado quando de tal julgamento, o Min. Relator, Luis Roberto Barroso, juntamente de seus pares, discutiram sobre os efeitos nocivos gerados ao país em virtude do não recolhimento fiscal. Embora louvável tal preocupação, acreditamos que esse ponto do debate, de certa forma, extrapola os limites de atuação do Poder Judiciário, até mesmo porque as políticas públicas de controle de mercado são reservadas aos Poderes Executivo e Legislativo. Quer dizer, portanto, que são questões de natureza eminentemente política, que estão fora da alçada da esfera Judicial, de modo que, ao nosso vero julgado em comento quebrou, de modo irrecuperável, o pacto republicano[3], uma vez que utiliza fundamentação prioritariamente política para justificativa da matéria.

No processo ora em destaque, a Corte Constitucional julgou como crime o fato de o Empresário (que é o verdadeiro Contribuinte do tributo e não mero arrecadador da obrigação) ter declarado o percentual de ICMS sobre determinada operação sem, no entanto, concretizar o recolhimento do tributo.

Dentre os pontos que merecem destaque, podemos apontar o fato de que, no caso do recolhimento do ICMS, a obrigação é de responsabilidade da pessoa jurídica, a qual é o sujeito passivo da obrigação. Neste caso, os custos tributários também compõem o “preço final” do produto/serviço, juntamente das demais despesas incidentes na operação, ou seja, incorpora ao patrimônio da companhia. Diferente do que ocorre em outras operações, onde as empresas ou mesmo as concessionárias de serviços funcionam como agentes arrecadadores do tributo, o qual não compõe o “preço final” do produto / serviço e, dessa forma, não se incorpora ao patrimônio da pessoa jurídica.

Por integrar o preço do produto/serviço, aquele valor relativo ao custo tributário acaba por ser revertido como renda / receita em favor da Empresa, adentrando em meio ao custo e ao lucro da operação mercantil; de modo que, diferente das hipóteses trazidas acima (de apropriação da empresa ou da concessionária), o cliente não sabe, exatamente, qual a parcela específica de ICMS está pagando ao adquirir aquele produto/serviço.

Somente ao final, com a declaração realizada pela Empresa, é que se afere o quanto de ICMS haverá de ser pago, em definitivo, sobre aquela operação. Da mesma forma que, somente após a declaração de Imposto de Renda é que se poderá aferir o valor do imposto sobre a renda da companhia. Nessas hipóteses, a Pessoa Jurídica é a contribuinte do imposto por declaração, e não o cliente adquirente do produto / serviço, muito embora o valor do imposto tenha sido integrado ao preço do referido produto/serviço que foi adquirido.

A situação acima definida é bem diferente do que ocorre em outras operações, onde o imposto cobrado/suprimido já vem destacado, figurando a Empresa como agente arrecadador do tributo. Neste caso, o não repasse dos valores, enseja, consequentemente, apropriação indébita por parte do agente que arrecadou, mas não o repassou ao Fisco.

Com isso, após a decisão do Supremo, a linha tênue que separava o sujeito passivo do tributo e o mero arrecadador foi superada, não mais havendo distinção entre os mesmos, de modo que a Corte Superior abriu precedente que pode levar a entender que toda e qualquer inadimplência fiscal pode ter desdobramento criminal. Isto é, sob tal ótica, toda inadimplência fiscal pode ser interpretada como apropriação indébita fiscal, já que, invariavelmente, parte da renda auferida numa transação comercial será revestida no recolhimento de impostos (municipais, estaduais e federais), mesmo não sabendo, naquela oportunidade, o quantum devido.

Merece destaque, ainda, que tal interpretação (inaugurada pelo Supremo) imputa conduta tida crime, em tese, indefensável, pois previamente confessado. Explica-se. Sua caracterização, pela a ótica atribuída no julgado, é a confissão, isto é, é preciso que o sujeito passivo tributário declare ao Fisco a incidência do tributo, mas não o recolha. É a partir da inadimplência fiscal que se caracteriza a apropriação indevida.

Noutras palavras, o expediente de declarar somado ao fato de não pagar o tributo na data de vencimento importa, necessariamente, numa confissão antecipada de crime, de modo que tal linha de interpretação pode vir a estimular a sonegação, o que, data maxima venia, importa num desserviço ao Estado Democrático de Direito.

Em verdade, no nosso entender, o que se deve ter como foco é a conduta adotada pelo contribuinte e as especificidades de cada caso; de modo que o mero inadimplemento não pode ser caracterizado como apropriação indevida, criminalizando a conduta regular do empresariado, o qual, por vezes, pode estar passando por dificuldade financeira pontual, sem a intenção efetiva de fraudar, ou praticar ilícito. Até mesmo porque este, tão logo seja possível, certamente poderá adotar todas as medidas para regularizar sua situação, quer seja com o pagamento integral do imposto, ou mesmo com o parcelamento deste.

Portanto, não se está aqui a defender o não recolhimento tributário, mas se adverte que a interpretação atribuída pelo Supremo Tribunal Federal, neste caso em específico, importa numa temeridade por tipificar “crime” aquilo que não é em sua essência, além de abrir precedente para que qualquer inadimplência fiscal possa ser interpretada como atividade criminosa, o que vai colocar em risco a atividade desenvolvida por aqueles empresários que enfrentem, transitoriamente, dificuldades financeiras.

Para uma avaliação mais apurada, como já mencionado, é importante não generalizar o assunto, devendo se adentrar as especificidades de cada caso, onde o crime de apropriação indébita será analisado a depender do caso concreto, devendo restar caracterizada, para sua tipificação, a apropriação e o animus dela decorrente.

Fortaleza, janeiro de 2020.

O presente trabalho não representa necessariamente a opinião do Escritório, servindo apenas de base para debate entre os estudiosos da matéria. Todos os direitos reservados.

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Recurso em Habeas Corpus nº 163.334.

[2] Lei nº 8.137/90. Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

[3] Constituição Federal: Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Autores do texto:

[Francisco Érico Carvalho Silveira] Advogado. Sócio-fundador do Escritório Alcimor, Silveira, Figueiredo, Sá. Juiz Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (exercício 2020-2022).

[Mário Marrathma Lopes de Oliveira] Advogado. Sócio-fundador do Escritório Mario Marrathma S. U. de Advocacia. Procurador Jurídico na Autarquia de Regulação, Fiscalização e Controle dos Serviços Públicos de Saneamento Ambiental – ACFOR.